Os jesuítas e a unidade nacional segundo a Revista do IHGB (1839-1889)

AutorSimone Tiago Domingos
Páginas161-179

Simone Tiago Domingos. Mestranda em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP, SP/Brasil), sob orientação da Profa. Dra. Izabel Andrade Marson. Pesquisa financiada pela FAPESP. Correo electrónico: si_tdomingos@hotmail.com.

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A fundação do IHGB e sua Revista

Por iniciativa de membros da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (SAIN) –agremiação composta por proprietários de terras e políticos cujo projeto principal era viabilizar o Império enquanto nação, promovendo o progresso da agricultura assim como sua unidade política– foi criado o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) no dia 21 de outubro de 1838. Uma associação científica que seria responsável pela seleção, organização, publicação e arquivamento de documentos relativos à história e à geografia do Brasil.1

Dos vinte e sete membros iniciais, vinte e dois pertenciam à hierarquia interna do Estado, ocupando cargos variados. Portanto, o IHGB incorporava tanto políticos e proprietários de terra quanto literatos e pesquisadores. Os donativos estatais também eram significativos. No início das atividades, 75% do orçamento era pago pelo Estado, sendo que nos anos de 1840 o Imperador, além de participar das reuniões, auxiliava financeiramente.2 A proximidade do Imperador ao IHGB, aliás, foi essencial para a consolidação e estabilidade do mesmo. O ato de solicitar a proteção imperial conferiu ao Instituto uma submissão ao monarca e promoveu uma constante apologia a Dom Pedro, à sua família e o atendimento de contínuos pedidos de favores imperiais.3

No princípio, a disposição da hierarquia interna se dava da seguinte maneira: sócios efetivos (residentes no Rio de Janeiro que apresentassem trabalhos referentes à história, geografia ou etnografia do Brasil); sócios correspondentes (aqueles de idoneidade intelectual ou ofertantes de algo a ser incorporado ao museu do Instituto); sócios honorários (de idade mais avançada e de consumado saber e distinta representação); beneméritos (sócios efetivos que realizaram serviços relevantes ou doadores de importância superior a 2:000$Page 163 em dinheiro ou objetos de valor); presidente honorário (conferido aos chefes de Estado). A função de presidente, na prática, era mais simbólica, enquanto que, os secretários se ocupavam das atividades do dia-a-dia do IHGB –montagem de atas, pautas de reunião, direção de trabalhos, organização da Revista, concursos– supondo-se, segundo Schwarcz, que estas pessoas tinham certo nível de instrução e uma perspectiva profissional no ensino.4

O principal meio de propagação da produção historiográfica, documentos, propostas e intenções políticas do IHGB era a sua Revista (RIHGB) que passou a ser publicada no ano seguinte à fundação do Instituto. Em linhas gerais, eram divulgadas notícias biográficas de brasileiros famosos; cópias autênticas de documentos históricos (de origem civil ou religiosa); informações sobre os indígenas do Brasil; descrições das províncias, destacando comércio, produtos, geografia e população; notícias de acontecimentos, maravilhas naturais, minerais, animais. Entre 1839 e 1889, o periódico saiu todos os anos, compondo um acervo de 52 tomos. Além da publicação regular, o IHGB, em momentos comemorativos, lançava volumes especiais com artigos de cunho histórico.5 De acordo com Lúcia Guimarães, as publicações podem ser divididas em duas categorias: “documentos contemporâneos”, ou seja, aqueles produzidos entre 1838 e 1889; e “documentos não contemporâneos” (ou “de época”), isto é, produzidos até 1838.6

O papel da escrita era fundamental para o IHGB, caracterizado no seu início como uma instituição cultural nos moldes de uma academia, permeada pelo iluminismo e objetivando o traçar da gênese da nacionalidade brasileira. Ou seja, o desenvolvimento e construção de uma idéia de nação, que se projetava na figura de uma civilização branca e européia nos trópicos.7 Dentro desta perspectiva, igualava-se a um conjunto de associações do mundo ocidental que se dedicou a “recolher, preservar, pesquisar e divulgar as respectivas histórias nacionais”. Manteve uma afinidade intelectual com inúmeras delas, especialmente no que dizia respeito à visão da História, vinculando-se a umaPage 164 tradição antiquária que se somou à cultura histórica oitocentista.8 A própria concepção de História adotada pelo IHGB –a de mestra da vida– sinaliza o sentido político do saber histórico, ali concebido como orientação do presente: “a tarefa de lidar com o passado aparece assim como caminho importante para a resolução das questões do presente [...] Um sólido conhecimento da História poderia fundamentar as pretensões da política externa [...] A escrita da História, ainda que submetida as regras próprias ao seu campo, não está desvinculada da política”.9

Tratava-se de uma política centralizadora que se identificava com um Estado comprometido com a unidade nacional e com a atuação de D. Pedro II. Todavia, esta identificação não significava uma unilateralidade das opiniões. Ao longo dos anos, os membros do IHGB assumiram posições diferentes diante dos eventos contemporâneos e também do passado.10 Havia uma estreita relação entre a política imperial e o saber por ele produzido, relação esta demonstrada pela moldagem de versões dos episódios históricos e publicação de documentos conforme conveniência do Estado, e dos sócios pertencentes a uma elite intelectual e política. Dessa forma, o periódico do IHGB veiculava uma memória afinada com o projeto político necessário para sustentação do Estado Monárquico, sinalizando um diálogo entre os textos publicados pela sua Revista, os acontecimentos e a disputa político-partidária.

Nosso objetivo é apontar como se estabeleceu a tarefa de delinear a história oficial do Brasil no IHGB através da Companhia de Jesus já que este é um dos temas que suscitou opiniões diversas e um debate acirrado que ficou registrado nas páginas da RIHGB. Publicadas no contexto das discussões sobre o destino das ordens regulares no Império, elas ilustram diferentes representações e posicionamentos sobre os inacianos existentes entre os sócios do IHGB.

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A Companhia de Jesus e a construção da Nação Diferentes leituras na Revista do IHGB

No primeiro volume do periódico (1839), o Marechal Raymundo José da Cunha Mattos e o Cônego Januário da Cunha Barbosa, apresentaram um texto11 sobre a criação do IHGB revelador da importância e intenções daquele órgão, cuja primeira justificativa fundamentou-se no grande valor atribuído às lettras, em especial à história e à geografia, na formação da sociedade e no “auxílio à pública administração”:

Sendo innegavel que as lettras, além de concorrerem para o adorno da sociedade, influem poderosamente na firmeza de seus alicerces, ou seja, no esclarecimento de seus membros... é evidente que em uma monarchia constitucional [...] a maior soma de luzes deve formar a maior [...] felicidade publica, são as lettras de uma absoluta [...] necessidade, principalmente aquellas que, versando sobre a historia e geographia do paiz, devem ministrar grandes auxílios à publica administração para o esclarecimento de todos brazileiros.12

Para a realização desses objetivos, o IHGB se ocuparia especialmente em centralisar immensos documentos preciosos, espalhados pelas províncias capazes de compor um arcabouço para a história e geografia do Império e em realizar estudos relativos a questões da Indústria Nacional, sobretudo da agricultura. No primeiro artigo (de um total de nove) que fundamenta sua instalação, temos a seguinte expectativa: “1ª. Fundar-se-ha, sob os auspícios da Sociedade Auxiliadora da Industria Nacional, um Instituto Historico, que especialmente se occupe da história e geografia do Brazil”.13 Assim, ao encaminhar questões práticas, o Instituto também assumiu como função principal definir uma História da nação, uma história oficial, bem como as justificativas para a conformação do seu território.

Salgado Guimarães nos lembra que da associação entre interesses nacionais e o projeto científico para a História, nasceu uma cultura histórica responsável em afirmar a centralidade da História no processo de definição e sentidos para o homem contemporâneo. Desta forma, esta cultura histórica congregava passado, presente e futuro, “remetendo-nos para o passado comoPage 166 lugar por excelência de definição de um sentido original, razão explicativa da própria existência do presente”.14 O nascimento da História como disciplina não se dissociava de um projeto político uma vez que, somados aos métodos de trabalho para a pesquisa histórica, esperava-se obter um caminho que orientasse para o futuro.

A História, na sua forma disciplinar, foi instituída como área de conhecimento e canonizada a partir de autores e textos que se tornariam clásicos através de um processo viabilizado por embates na leitura de autores que construíram o campo ao longo do século XIX. Como não podia ser diferente, no Brasil, o IHGB exerceu um papel fundamental nesta constituição de clásicos. Podemos considerar que, juntamente com a obra de Varnhagen, assumiu, no século XIX, a tarefa de construir a memória da nação a partir de um novo projeto emergente após a Independência do Brasil.

Tal tarefa, no entanto, encontrava dificuldades, não apenas pelos documentos espalhados, mas pelo próprio interesse dos escritores que, até então, de acordo com o Discurso de Barbosa, estavam mais interessados em escrever “histórias particulares das provincias do que um historia geral”.15 O IHGB objetivava, naquele momento, por fim a estes particularismos em defesa de uma história nacional. Tratava-se, segundo Temístocles Cezar, de ressuscitar fatos notáveis antes esquecidos capazes de transmitir uma “idéia de nação unificada”, ou seja, “tornar visível a história preexistente do Brasil”, uma história “precisa, um...

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